quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Flor no cabelo

Losang era um jovem que vivia com seu pai perto de um grande rio chamado Tzangpo. Com o pai caçador havia aprendido desde menino a manejar o arco e flecha com agilidade impressionante. Ele era forte, não tinha medo de nada e, como se não bastasse, era tão belo que não havia uma jovem no povoado que não desejasse ser sua mulher. Ele não ligava pra nenhuma delas. Até que um dia aconteceu uma coisa surpreendente: Losang tinha voltado de uma caçada e deitou-se à beira do rio, como sempre fazia. Seus pensamentos corriam para longe, embalados pelo murmúrio incessante das águas; era como se ele mesmo fosse parte do rio.  Era uma jovem que vinha caminhando com passos leves , carregando um balde de madeira. Nos cabelos negros e compridos trazia uma flor de laranjeira, luminosamente branca. À beira do rio, ela se inclinou para encher o balde de água, depois rio para Losang e sem mais sem menos começou a falar:
- Nossa que rapaz mais preguiçoso! Fica aí deitado, com a cabeça nas nuvens, sem desconfiar que a felicidade o espera, longe daqui.
Na outra margem Losang escutou aquelas palavras. Armou o arco e atirou a flecha que atingiu o balde bem no meio. A água começou a escorrer pelo buraco e a jovem gritou pra ele muito brava:
- Mais isso é coisa que se faça? No seu lugar eu não me orgulharia nem um pouco de ter acertado no balde. Existem coisas muito mais difíceis de fazer. Por exemplo: montar o cavalo de sete esporas do seu pai. Se conseguisse domar esse cavalo, ai sim poderia se vangloriar.
Em seguida ela se virou e foi embora pelo caminho. Assim que ela desapareceu entre montanhas altas, Losang voltou para casa e foi procurar seu pai e foi perguntar sobre o tal cavalo, do qual ele nunca tinha ouvido falar. O pai a princípio não queria responder, mais depois disse muit preocupado:
- Esse cavalo é perigoso demais, seria arriscado aproximar-se dele. Eu mesmo nunca consegui montá-lo, por isso achei melhor  que você não soubesse de sua existência. Mas talvez seja a hora de você passar por essa prova. Se tiver certeza de que é isso mesmo que quer, então vá até as montanhas cinzentas e atravesse três picos e três vales.
Quando chegar a um monte cheio de pedras amarelas, procure uma bacia de água. Se ela estiver vazia, desça até o vale e lá encontrará o cavalo. Boa sorte, eu estarei aqui esperando por você meu filho. Losang fez como o pai havia indicado e finalmente encontrou o lugar onde havia a bacia sem água. Desceu o monte e viu um enorme cavalo, com a crina até o chão, parado perto do lago. Ele não teve tempo de pensar de fazer nada, pois o cavalo já vinha em disparada  na sua direção. Ele se encostou no rochedo e o cavalo passou como um raio, deixando um rastro de poeira seca. Losang sabia que seria impossível montá-lo do modo como sempre fazia, então teve uma ideia: subiu num pinheiro e esperou o cavalo passar embaixo. No exato instante em que o animal se aproximou do galho em que ele estava, Losang pulou sobre ele agarrou-se com todas as suas forças a crina do animal. Por mais que o cavalo pulasse e sacudisse a crina violentamente, Losang não desgrudou as mãos. Um dia inteiro galoparam como loucos, numa luta sem trégua. Quando o sol se pôs no horizonte o cavalo cedeu, acalmou-se como por encanto e passou a obedecer ao cavaleiro que o havia conquistado. Losang voltou pra casa montado no seu cavalo, e quando passava pela margem do rio Tzangpo ele viu outra vez a jovem com a flor de laranjeira nos cabelos, mergulhando o balde na água. Novamente ele atirou sua flecha certeira, furando o balde, e a água escapou toda. Furiosa a jovem disse:
- Não acho grande coisa conseguir montar esse cavalo. Muito mais difícil é alcançar um outro rio que fica a duas milhas daqui. Lá mora a bela Boumo, que até hoje nenhum homem foi capaz de conquistar. Mas você nunca vai conseguir chegar lá, porque fica perdendo seu tempo demonstrando habilidades inúteis, atirando flechas em baldes...
Logo ela já havia sumido entre as montanhas altas, enquanto Losang se sentia completamente desajeitado em cima do seu enorme cavalo.
Por mais que seu pai o tivesse recebido com a maior alegria e o elogiasse pela sua bravura, Losang não conseguia parar de pensar na bela Boumo. Por mais que parecesse absurdo, ele tinha certeza de que precisava partir e ir ao seu encontro., ainda que nada soubesse dela. O pai tentou desencorajá-lo, o caminho era cheio de perigos e ameaças, no povoado havia muitas jovens bonitas que poderiam fazê-lo muito feliz, ele dizia. Mas não adiantou. Losang se foi no dia seguinte, montado no seu cavalo gigantesco. Atravessou o rio e seguiu pelo caminhona direção das montanhas altas, mas quando ele chegou lá o chão parecia se mover sob as patas do cavalo. E logo ele percebeu que aquilo não era chão coisa nenhuma: ele estava na verdade cavalgando sobre as costas de um enorme dragão de argila. Mas adiante estavam 38 jovens de mãos dadas, gritando por socorro. Losang atirou uma fleha na cabeça do dragão, e o sangue nego que esguichou da ferida atingiu seu peito com tanta força q o derrubou. Losang desmaiou e as jovens o cercaram. A mais jovem delas foi até a cabeça do dragão morto e arrancou da sua testa uma pérola luminosa. Com todo cuidado, ajoelhou-se diante de Losang e colocou  pérola sobre seu peito, pressionando-a levemente. Losang acordou e viu todos aqueles lindos rostos sorridentes debruçados sobre ele.
- Muito bem – disse uma das jovens -, estamos muito agradecidas por ter-nos salvo do dragão. Queremos que voê escolha uma de nós para ser sua mulher.
- Isso não é possível – respondeu Losang. – Estou viajando para encontrar a bela Buomo e é com ela que vou me casar.
Mas elas tanto insistiram que ele resolveu escolher a mais jovem delas para acompanhá-lo. Ele tinha a impressão de que a conhecia de algum lugar.
Antes de partirem receberam um presente para a viagem. As jovens moldaram com a argila do chão um cavalo perfeito envolvend a pérola luminosa. E quando ele fiou pronto, om o sopro de vento transormou-se num cavalo de verdade, impotente, mágico. A jovem escolhida o montou e despediu-se das companheiras.
No caminho Losang lhe disse:
- Quando chegarmos ao meu destinho, tenho certeza de que você vai encontrar um moço para se casar. Quanto a mim, não penso em ninguém mais a não ser em Boumo.
Depois de um bom tempo de viagem, os dois chegaram à beira de um rio impetuoso. Passando sobre um tronco de árvore estendido acimado rioele puderam alcançar a outra margem, onde havia uma gruta escura. Na entrada da gruta stava uma menina amarrada a uma pedra pelos pulsos e pelo pescoço. Ela contou que la dentro da gruta moravam oito monstros terríveis e que ela era sua prisioneira. Quando dormiam, eles a amarravam para que ela não fugisse. Depois ela revelou a Losang que atrás da gruta estava enterrado um machado, o único instrumento que poderia matar os monstros. Losang foi buscá-lo. Entrou na gruta e matou sete monstros cortando a cabeça dele, um por um. Mas o oitavo surgiu de repente na escuridão da gruta e agarrou Losang por trás, imobilizand-o. Quando o monstro estava prestes a matar o rapaz, a jovem que tinha ficado lá fora soltando as amarras da menina entrou na gruta comuma barra de ferro na mão e bateu na cabeça do monstro derrubando-o. Losang pegou o machado e o matou. E lá estavam os três, Losang e as duas companheiras, com pressa de deixar aquele lugar horroroso. A menina, muito agradecida, deu de presente a Losang uma bolsinha cheia de ervas. Ficou combinado que a jovem acompanharia a menina até sua aldeia e elas iriam montadas no cavalo de Losang, que era suficientemente grande para levar as duas. Enquanto isso Losang seguiria no cavalo mágico e esperaria pela jovem no alto da colina. E assim ele fez, porém a jovem não chegava nunca, o tempo fio passando e começou a chover. O cavalo mágico foi se desmanchando na chuva, foi diminuindo até que sumiu de vez, ficando em seu lugar só a pérola luminosa q estava dentro dele. Depois de esperar muito, Losang guardou a pérola no bolso e continuou a pé pelo caminho com o machado preso à cintura. Uma nuvem de insetos ferozes surgiu de repente sobre ele. Losang se lembrou da bolsa de ervas que tinha dependurada no pescoço, e foi o que o salvou. Esfregando as ervas  pelo corpo espantou os insetos, que desapareceram num instante. Logo depois a jovem companheira da viagem apareceu montada no cavalo de Losang.
- Ainda está em tempo – ela disse. – Você nem sabe como é essa tal de Buomo, por que não desiste dela e se casa comigo ?
Losang sorriu e não disse nada. Pela cara dele não aditanva insistir. Continuaram em silêncio pela estrada tortuosa ladeada de árvores floridas até que entraram em um vale muito verde,de onde se avistava uma aldeia ao pé de uma impotente montanha. Era a aldeia de bela Buomo. Para se chegar lá era presciso atravessar o último rio da viagem, um rio largo e misterioso.
- Chegamos – disse a jovem. – Daqui para frente você segue sozinho. Está vendo essas casinhas do lado de cá do rio ? ali moram umas pessoas que conheço, vou focar com elas enquanto você encontra a bela Buomo. Pode me esperar, vejo você no seu casamento.
Ela saltou do cavalo e despediu-se de Losang.
Algum tempo depois ele chegoua aldeia e, depois de perguntar por Buomo, foi conduzido à casa de seu pai, que se chamava Norbu. Não era um homem amável e amistoso. Com poucas e ríspidas palavras, disse que Losang precisava provar que valia alguma coisa antes de ter permissão para casar com sua filha.
- Estou disposto a qualquer coisa- disse Losang. – Não foi fácil chegar até aqui e saiba que não vou desistir da bela Buomo por nada neste mundo.
- Muito bem, então podemos começar agora mesmo – retrucou Norbu. – Venha comigo.
No pátio da casa estava um cavalo castanho. Na sua sela Norbu prendeu uma moedinha de cobre que tinha um furo no meio. Depois ele deu um tapa no lombo do animal, que saiu a galope.
- Agora você tem que atirar uma flecha e acertar bem no buracoda moeda- ele disse em tom desafiador.
Losang pulou no seu cavalo e armou o arco num segundo. A flecha foi zunindo, mais rápida que o vento. Quando o cavalo de Norbu voltou para o pátio a flecha de Losang, fincada exatamente no buraco da moeda.
- Razoável- disse Norbu. – Você tve sorte dessa vez, não sei se continuará tendo. Mas é melhor continuarmos amanhã, já é quase noite.
Eles voltaram para a casa de Norbu, que mostrou a Losang o quarto em que ele iria dormir. Abriu a porta e, quando Losang entrou, fechou-a rapidamente de trancou o jovem lá dentro. Estava uma escuridão total, e Losang lembrou-se da pérola luminosa que trazi no bolso. Assim que a colocou na palma da mão o quarto se iluminou. E ele viu que estava rodeado de mosquito e outros insetos, no chão, no teto, nas paredes. Dessa vez ele não teve o minimo de sobressalto, afinal era um problema eu ele sabia muito bem como resolver. Com muita calma pegou as ervas dentro da bolsa q havia ganho da menina da gruta e esfregou-as no corpo. Na manhã seguinte, quando Norbu veio abrir a porta, ficou muito surpreso. Na cama, Losang dormia tranquilamente e pelo chão havia milhares de insetos mortos.
Norbu não conseguiu dizer nenhum palavra sobre o que havia acontecido. Disse apenas, secamente, que faltava uma última prova.
Eles saíram da casa e foram até um lugar onde uma pequena multidão estava reunida. Losang passou entre as pessoas, até que viu no meio delas um círculo de fogo. E nesse instante ele se sentiu paralisado ao perceber que, num estrado de madeira colocado bem no alto da fogueira que queimava no meio do círculo, estava uma jovem, com uma flo de laranjeira nos longos cabelos negros.
As pessoas gritavam:
- Grande herói, atravesse o fogo e salve Boumo.
Era um segundo ele se deu conta de que Boumo era a jovem que ele tinha visto carregando o balde, e era também aquela que tinha pressionado a pérola sobre seu peito e o havia acompanhado na viagem . Em menos tempo do que seria possivel contar, ele pegou o machado mágico que trazia preso à cintura e foi cortando os troncos de madeira, abrindo caminho no meio do gofo até chegar aonde estava a jovem e conseguir trazê-la nos braços para fora do anel de chamas.
Não teve jeito. Norbu foi obrigado a reconhecer que Losang era mais do que digno de casar com sua filha e não havia nada que ele pudesse fazer para impedi-lo.
Assim que pôde ficar sozinho com a bela Boumo, Losang perguntou-lhe:
- Por que você não me disse logo quem era, quando me viu perto do rio e depois quando a salvei do dragão?
- Bem, é que eu já tinha ouvido falar de você e quis conhecê-lo melhor – ela respondeu com uma voz muito doce. – E depois, eu não acharia a menor graça em casar com um homem que pensasse que a maior proeza para conquistar uma jovem fosse furar um balde com uma flecha.

Quando Losang voltou para casa com Boumo, montando no seu cavalo gigantesco, um sol magnífico iluminava o caminho durante o dia.
À noite, era uma estrela brilhante que os guiava na direção da mais completa felicidade .


Conto tibetano 
 recolhido por Regina Machado
In: O violino cigano e outros contos de mulheres sábias

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