quinta-feira, 29 de maio de 2014

Lenda das areias

Era uma vez um rio, um pequeno fiozinho de água que um dia nasceu no pico de uma montanha muito alta.
Pois nem bem nasceu, aquele riachinho cismou que queria conhecer o mar. E foi descendo a montanha, curioso com tudo o que via pelo caminho. Foi crescendo, ganhando mais água, foi virando um rio de verdade. Depois de um tempão, chegou ao pé da montanha e deu de cara com um montão de areia. Olhou para um lado, areia. Olhou para o outro, areia. Olhou para a frente , areia. A perder de vista, por toda a parte, um grande deserto. Não havia outro jeito. Para chegar até o mar, lá longe, ele tinha que atravessar aquelas areias. Ele bem que tentou, mas por mais que se esforçasse, não conseguia seguir adiante. Suas águas se afundavam nas areias. Quanto mais força ele fazia, mais para dentro delas era levado.
Então uma voz, vinda das areias, falou para o rio:
- Assim você nunca vai alcançar o mar. O único jeito é deixar que o vento transporte você até lá.
- Como assim?  - disse o rio muito espantado - De que maneira o vento poderia fazer isso?
- Primeiro, você se transforma em vapor e o vento carrega você para o céu em forma de nuvem; depois, a nuvem vira chuva e é nessa forma de chuva que você cai no mar.
- De jeito nenhum - disse o rio. - Se eu deixar de ser rio, quem pode me garantir que vou ser eu mesmo, outra vez? Deve existir outra maneira.
- Não existe - disse a voz.
- Eu nunca ouvi nada tão sem sentido como isso que você está dizendo. Como posso arriscar a fazer uma coisa que nunca fiz antes? E se eu virar vapor e sumir? Não posso acreditar em algo que não conheço.
- Pois se você continuar insistindo em fazer só o que conhece, investindo com toda a força contra as areias, o máximo que vai acontecer sabe o que é? Você vai virar lama, sem sair do lugar, sem conhecer o mar.
 - Mas eu sou um rio respeitável, não posso virar vapor, assim sem mais nem menos. Demorei muito para formar tanta água, como é que de repente vou deixar de ser o que sou?
- Você não sabe de verdade quem você é, não adianta ficar repetindo essa lengalenga, tente se lembrar de outra coisa... a não ser que você se contente em se transformar num grande lamaçal, barrento e parado.
O rio não queria virar lama, isso é que não. Começou a se perguntar, a pensar no que a voz havia dito. Devagar foi se lembrando, talvez algum dia, lá longe, no passado, ele já tivesse virado vapor, não tinha certeza, mas quem sabe?
Ele ficou cheio de dúvidas, com um medo danado, mas uma hora resolveu arriscar.
Quando o vento veio chegando, estendeu os braços para ele e então o rio se largou nos braços do vento e virou vapor. Enquanto era levado, durante o caminho para o céu aconteceu de tudo. Ele teve medo, chorou, outra hora pensou que estava ficando louco, que nunca mais ia voltar para o chão. Algumas vezes ele se divertiu, viu coisas maravilhosas, de novo chorou e duvidou de tudo. E assim foi descobrindo tanta coisa que ele podia conhecer e fazer que nem sequer imaginava.
Quando finalmente chegou ao mar, como uma chuva grossa e quente, teve uma alegria enorme. Além de conhecer o mar, que era o que ele mais queria na vida, ele tinha aprendido quem ele realmente era.

Conto de Tradição Oral
in: MACHADO, Regina. Acordais: Fundamentos Teórico- Poéticos da Arte de Contar histórias.

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